Tolerância venenosa Destaque

Substâncias com potencial cancerígeno ainda têm seu uso tolerado como matéria-prima ou até como instrumento de trabalho. Se isso não for combatido, o Brasil pode herdar uma epidemia de câncer ocupacional nas próximas décadas

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Antonio Rasteiro já passou por oito cirurgias

Há três anos o ganho repentino de 20 quilos intrigou o químico Luís João da Cruz, de São Bernardo, no ABC paulista. Até que exames revelaram o mau funcionamento da tireóide. Pior: uma alteração sanguínea chamada síndrome mielodisplásica. O diagnóstico – a meio caminho da leucemia – contraria o dos médicos da Basf, onde ingressou há 12 anos. Para eles, seu problema era atribuído a fatores genéticos e étnicos. Mas os sangramentos constantes ao se barbear o levaram a procurar outros especialistas e, por fim, um médico do Sindicato dos Químicos do ABC.

“Para lavar os tachos e limpar o chão, eu usava uma mistura de benzeno, xileno, metanol, acetato de metila e outros solventes reaproveitados. Hoje sei que a máscara e as roupas que usava não me protegiam dos vapores desses produtos”, afirma. Luís já retirou um tumor benigno mamário e em breve começará novo tratamento no Hospital do Câncer. O sonho do ajudante de seguir carreira na empresa o levou a entrar na faculdade de Química. Formou-se ano passado, aos 36 anos. Afastado do trabalho, não pôde alcançar promoções. Hoje, ensina química em um cursinho gratuito para alunos carentes.

Leucemia é o nome dado a um conjunto de tumores malignos devido ao acúmulo de células imaturas na medula óssea, onde o sangue é produzido. É um entre os cerca de 100 tipos de câncer, doença que é a segunda maior causa de morte entre os brasileiros acima de 40 anos. Perde apenas para as complicações cardiovasculares. Em 2005 o Sistema Único de Saúde registrou 423 internações, 1,6 milhão de consultas ambulatoriais e consumiu 1,16 bilhão de reais com a doença. A cada mês são tratados 128 mil pacientes em quimioterapia e 98 mil em radioterapia. De cada três novos casos, um será fatal.

Não se tem uma medida exata de quantas dessas ocorrências foram provocadas pelo trabalho. O Instituto Nacional do Câncer (Inca), ligado ao Ministério da Saúde, estima entre 2% e 4% delas. Uma publicação lançada em abril pela Federação Internacional dos Metalúrgicos (IMF, na sigla em inglês), para a campanha Câncer Ocupacional/Câncer Zero, revela que os tumores são responsáveis por um terço das mortes causadas por doença ocupacional no mundo. Outro estudo, divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), afirma que os riscos dos ambientes de trabalho levam a 10% das mortes por câncer de pulmão.

No Brasil, a falta de estatísticas se deve à baixa de notificação dos casos. Por temer pelo emprego, muita gente evita ou adia cuidados médicos. A Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT), principal instrumento para gerar dados, procedimentos de tratamento e ações preventivas, raramente é emitida em casos de câncer. Não são raros médicos do trabalho que colaboram para isso, acreditando que assim protegem o interesse do empregador. E pouca gente sabe, mas a CAT pode ser emitida pela empresa, pelo próprio trabalhador, pela entidade sindical, por médicos, magistrados, membros do Ministério Público, bombeiros e outras autoridades. Por fim, há também peritos do INSS que, por desinformação ou má-fé, só aceitam a CAT emitida pelo patrão.

Levantamento inédito feito pela professora Anadergh Barbosa de Abreu Branco, do Laboratório de Saúde do Trabalhador da Universidade de Brasília (UnB), dá uma idéia da subnotificação. A pesquisadora constatou que, em 2004, o INSS concedeu 73.905 auxílios-doença e aposentadorias para vítimas de câncer. Desses, apenas 104 foram relacionados ao trabalho. “O número está muito aquém até dos índices mais conservadores”, diz.

Prevenção dificultada

A maioria dos tipos de câncer aparece quando o trabalhador já mudou de emprego, de ramo ou se aposentou. “E, quando o especialista não investiga a história profissional do paciente, as origens do problema acabam ignoradas”, observa Jefferson Benedito Pires de Freitas, médico do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador da Freguesia do Ó, em São Paulo. Assim, o trabalhador tem dificuldade de cobrar na Justiça a reparação pelo dano ou de requerer aposentadoria especial. A não investigação da origem da doença dificulta ainda a avaliação do grau de risco das atividades e a adoção de medidas preventivas.

O fato de o câncer ser comumente associado a fumo, sedentarismo ou inadequação alimentar é outro obstáculo à identificação dos agentes cancerígenos utilizados em empresas. A Basf, por exemplo, nega o uso de benzeno em qualquer uma de suas fábricas em todo o mundo, embora o químico Luís João garanta ter documentos que provariam o contrário na unidade de tintas automotivas, de São Bernardo. E, até que a Justiça dê o veredicto, outros poderão adoecer. Não é de hoje que a substância é associada à leucemia. Um acordo assinado no Brasil há 12 anos proíbe seu uso, o que não é cumprido à risca.

A Shell admite o uso de substâncias nocivas na fábrica de pesticidas que manteve no bairro Recanto dos Pássaros, em Paulínia (SP), no período de 1974 a 1995. E reconhece ter contaminado o meio ambiente. No entanto, diz que a contaminação não significa riscos à saúde humana e nega ter algo a ver com a doença dos trabalhadores que atuavam em uma área contaminada com aldrin, dieldrin e outras formulações da família dos drins – proibidas nos Estados Unidos no começo dos anos 70 –, mais o pentaclorofenol, o DDT, o toxafeno e o benzeno.

Relatório concluído no final de 2005, por encomenda do Ministério da Saúde, revela que, além dos moradores das chácaras nas imediações, todos os trabalhadores foram diretamente expostos – na produção, no armazenamento e no transporte – a vários agentes que afetam a função sexual, a ação imunológica e neurológica e induzem a tumores malignos nas mamas, testículos e próstata.

Dona Jandira Janasco, que nunca trabalhou na Shell, teve de retirar a mama esquerda. Ela sempre lavou à mão as roupas com que o marido, Nivaldo, ia trabalhar. Aos 58 anos, ele tem linfoma linfoblástico, câncer que atinge os gânglios linfáticos, responsáveis pelo sistema de defesa natural do organismo. Conforme o Inca, esses tumores estão ligados a pesticidas, solventes e fertilizantes; e a contaminação da água pelo nitrato presente em fertilizantes pode aumentar os riscos para a doença. “Já levanto tomando remédio”, diz Nivaldo, que faz quimioterapia. Por determinação judicial, a empresa tem de pagar parte da conta da farmácia.

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Contaminação em Família - Jandira teve de extrair uma mama. Ela lavava as roupas que Nivaldo usava na Shell

Risco 166 vezes maior

A médica June Maria Passos Rezende estudou documentos de 62 ex-trabalhadores da Shell atendidos no Centro de Referência em Saúde do Trabalhador de Campinas e concluiu que as pessoas do grupo analisado estavam 166 vezes mais expostas a riscos de câncer do que o restante da população masculina da cidade. June constatou três casos de câncer de tireóide. Um deles, Rafael José Martins, 31 anos, de Cosmópolis, venceu o câncer, mas não os metais pesados no sangue nem a sonolência excessiva, a tontura e a canseira provocadas pelos hormônios sintéticos que toma para compensar a falta dessa glândula, que precisou extrair. A tireóide fabrica hormônios que atuam nos sistemas digestório, urinário e nervoso, na renovação celular, no desenvolvimento dos músculos, dos ossos e até na função reprodutiva. “Estou afastado há quatro anos e não consigo passar em nenhum teste de seleção”, diz Rafael.

Seu colega Antonio de Marco Rasteiro, 59 anos, enfrentou oito cirurgias. Extraiu próstata, parte da bexiga e vesícula. Exames recentes revelaram focos de condição pré-cancerígena no esôfago e intestino. Sem contar a perda auditiva, a hipertensão e outras complicações. Antonio atua na Associação dos Trabalhadores Expostos a Substâncias Químicas (Atesq), criada há cinco anos com o apoio do Sindicato dos Químicos Unificados das regiões de Osasco e de Campinas. “Queremos que a empresa que tirou nossa saúde cuide de nós”, diz Mauro Bandeira, um dos líderes da associação.

De acordo com os epidemiologistas Fátima Sueli Neto Ribeiro, do Inca, e Victor Wünsch Filho, da Faculdade de Saúde Pública da USP, agentes reconhecidamente perigosos, como amianto (ou asbesto), sílica e a radiação ionizante, estão entre os que permitem exposições toleradas (leia quadro). Embora o Brasil adote a concepção de níveis tidos como seguros, a ciência não os reconhece.

Banido em 48 países, o amianto está no dia-a-dia de 1 milhão de trabalhadores brasileiros. A fibra mineral usada na fabricação de caixas d’água e telhas, por exemplo, causa câncer pulmonar e mesotelioma (tumor na pleura, membrana que reveste os pulmões). Essa doença, segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, matou 50 pessoas em 1980 e 179 em 2003. Mesmo assim, e contrariando diretrizes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o governo brasileiro opta pelo uso controlado, posição defendida pelos Ministérios das Minas e Energia e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. As pastas do Trabalho, da Previdência Social, do Meio Ambiente e da Saúde defendem o banimento gradual.

O aposentado José Antonio Domingues, 69 anos, de Adamantina (SP), sobreviveu a um câncer no pulmão, mas ficou apenas com metade do órgão. Entre 1976 e 1991 trabalhou na unidade de Osasco da belga Eternit. “Quando fui demitido, o médico disse que eu estava melhor do que quando entrei”, conta. Só soube que estava doente em 2002, pela Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro).

O órgão do Ministério do Trabalho examinou 900 ex-trabalhadores daquela fábrica organizados pela Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto (Abrea). Em setembro passado Domingues perdeu a mulher, com câncer generalizado. Eliezer João de Souza, presidente da Abrea, lembra um caso semelhante, em que o mesotelioma vitimou uma mulher que nunca tinha pisado na fábrica. Trabalhadores da Eternit, o marido e o filho dela desenvolveram asbestose e placas pleurais, respectivamente. “O amianto é questão de saúde pública e deve ser banido definitivamente”, diz Eliezer.

Élio Martins, presidente do grupo Eternit, admite 38 casos de câncer entre seus ex-trabalhadores, originados nos anos 80, quando “ainda não havia conhecimento suficiente sobre os riscos do mineral”. Segundo o presidente, a empresa assume o tratamento dessas vítimas. Ele afirma que o tipo de amianto usado no Brasil, o crisotilo, é “inofensivo” se empregado controladamente.

O pesquisador Hermano Castro, da Fiocruz, contesta. Desde a década de 50 os países europeus já conhecem o poder cancerígeno do pó. “Durante muito tempo acreditou-se que a doença, assim como o câncer pulmonar, aparecia mais de 30 anos após a exposição. Há estudos revelando que, nos dois casos, isso pode acontecer em até cinco anos”, afirma.

Matéria-prima nuclear

Trabalhadores da extinta Nuclemon também criaram uma associação para lutar, sobretudo, por um plano de saúde. A empresa funcionou entre 1949 e 1992 em Santo Amaro, zona sul da capital paulista. Processava as chamadas areias pesadas (monazita, zirconita, ilmenita, rutilo e ambligonita) para obter urânio e tório – ingredientes de combustíveis nucleares – e outros compostos para a indústria cerâmica, de vidros ópticos, solda e detergentes. Em 1994 foi incorporada pela estatal Indústrias Nucleares do Brasil (INB) e transferida para Resende (RJ).

No mês passado parte desses ex-trabalhadores se reuniu na subsede de Santo Amaro do Sindicato dos Químicos e Plásticos de São Paulo. Comemoravam o primeiro ano da associação e uma vitória na Justiça: a INB terá de incluí-los no mesmo plano de saúde oferecido aos seus trabalhadores atuais. A luta começou há 15 anos, quando a médica do trabalho Maria Vera Cruz de Oliveira, do Centro de Referência em Saúde do Trabalhador, começou a acompanhar o estado de saúde dos trabalhadores. Um deles, o técnico de segurança Almir Santana, 46 anos, do Guarujá, litoral de São Paulo, ficou doente em menos de dois anos de contato com agentes radioativos. “Descobri a leucemia em 2000, durante um exame admissional”, conta. Se existisse momento certo para notícia ruim, certamente não seria aquele, quando estava para ser contratado após meses sem emprego.

Almir fez transplante de medula, enfrentou uma catarata, tem artrose, síndrome do pânico e dificuldades para dormir. Aposentado, dedica-se à música quando não está em tratamento médico. O ajudante Jorge dos Santos Souza, 55 anos, desenvolveu câncer na próstata, que trata com radioterapia. As longas jornadas de trabalho em contato direto com as areias – sem proteção – marcaram seu rosto. Dos cerca de 500 funcionários que a Nuclemon tinha quando foi fechada, 90 ainda brigam pelos direitos.

Como as outras empresas ouvidas pela Revista do Brasil, a INB diz que acata a decisão judicial. No entanto, alega que o direito de reclamação dos ex-trabalhadores já estaria prescrito. O argumento conflita com o artigo 12 da Convenção 115 da OIT – que dá ao trabalhador exposto a radiação o direito a acompanhamento médico por no mínimo 30 anos. O Brasil ratificou a convenção, mas o artigo ainda não foi regulamentado. A INB também contesta a relação das doenças com o exercício profissional dos empregados.

De acordo com parecer do médico do trabalho Aluízio Torres Falcão, da unidade de Resende, “devem ser levados em conta não só fatores ocupacionais como também aqueles relacionados às condições de vida dos funcionários fora da empresa”.

Medo e epidemia

A partir do final dos anos 80, reestruturações produtivas, novas tecnologias e crises econômicas afetaram drasticamente o nível de emprego. A bandeira da manutenção dos postos de trabalho sobressaiu. “Os trabalhadores passaram a ter de escolher entre lutar por trabalho ou saúde”, avalia Fernanda Giannasi, auditora fiscal do Ministério do Trabalho. O medo – do desemprego e de tantas outras pressões – aumenta o estresse e a ansiedade. “Prejudica o sistema imunológico e favorece o aparecimento de diversos males, inclusive o câncer”, adverte Anadergh Barbosa, pesquisadora da UnB.

Segundo a OMS, 200 mil pessoas morrem por ano vítimas do câncer ocupacional. A maioria está nos países desenvolvidos, onde utilizar substâncias cancerígenas, hoje sob controles mais rigorosos, era constante há 20 anos. A OMS adverte que há empresas que ainda manipulam produtos cancerígenos – algumas operam em países com leis frouxas. “Se o uso desregulado de cancerígenos continuar nos países em desenvolvimento, pode levar a um aumento do câncer ocupacional nas próximas décadas”, afirma Fadela Chaib, porta-voz da OMS. Se as leis e a fiscalização forem frouxas no Brasil, o avanço da medicina em diagnósticos, medicamentos e tratamentos será incapaz de minimizar o impacto da epidemia anunciada.

 

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Reportagem produzida em 24/04/2006

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