A Guerra de Guarapari

"O artigo a seguir expõe as condições degradantes que os trabalhadores sofriam no século passado. O trabalho escravo, as condições de saúde dos trabalhadores e das roupas utilizadas por eles eram degradantes. Além disso, o texto relata como o fiscal, que deveria vistoriar as empresas, era mantido pelas mesmas companhias e não possuía o conhecimento técnico para diferenciar os tipos de areia contaminadas. O artigo aqui publicado demostra que as condições de trabalho no século passado são muito parecidas com as condições dos dias atuais, e que empresas e os órgãos públicos não mudaram muito para evitar que trabalhadores adquiram doenças e morram no local de trabalho".

 Uma trama envolvendo negociações secretas, acordos internacionais, disputas políticas, corrupção e exploração de trabalhadores liga o balneário de Guarapari, no Espírito Santo, ao programa de produção de armas nucleares dos Estados Unidos durante e depois da Segunda Guerra Mundial. O pivô de tamanha disputa é justamente o patrimônio que mais tarde deu fama à cidade por suas propriedades medicinais: a areia monazítica, rica em elementos radioativos. Essa areia abastecia as pesquisas de projetos secretos criados pelo governo norte-americano para acelerar a produção de bombas atômicas, sobretudo no período da Guerra Fria.

A reportagem do Gazeta Online teve acesso a documentos dos governos brasileiro e norte-americano, pesquisas acadêmicas, notícias de jornais da época e fotografias de arquivos públicos, que comprovam o envio de areia monazítica de Guarapari e outros municípios capixabas, do Rio de Janeiro e Bahia para os Estados Unidos – além de França, Alemanha e Inglaterra – entre as décadas de 1890 e 1960. Muitas vezes o envio era feito a “preço de banana” ou de forma clandestina, declarada como areia comum para preencher o lastro dos navios. Esse material, no entanto, é rico em tório, elemento radioativo muito visado em dois momentos da história: primeiramente usado para fabricação de luminárias a gás, exportada para a Europa a partir de 1890, e depois pela indústria nuclear na década de 1940, para desenvolvimento da bomba atômica.

Nesse caso, o tório virou alvo de cobiça internacional após a descoberta de que poderia ser produzido a partir dele Urânio 233 (U-233), elemento criado em laboratório e usado em reatores ou bombas atômicas.

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Retirada e transporte de areia monazítica de Guarapari no início do século XX. O material seguia para galpões de separação e estocagem, como retrata a imagem da capa, também do mesmo período. Fotos: Acervo Ufes

Entre boatos e verdades, há quem diga até que a areia monazítica de Guarapari foi usada para a produção da bomba que caiu sobre a cidade japonesa de Hiroshima, em 1945, matando cerca de 80 mil pessoas no episódio mais marcante da Segunda Guerra Mundial. Tal história circulou por diversos jornais e permeou discursos de figuras políticas brasileiras na década seguinte, a partir das investigações de que centenas toneladas de areia monazítica saíram do Espírito Santo de forma clandestina durante décadas a fio. O fato é que não é possível precisar quanto da areia foi levado durante esse período. Após o escândalo invadir o noticiário, estimou-se que pelo menos 200 mil toneladas de areia e tório haviam sido retiradas (legal e ilegalmente) de praias brasileiras em pouco mais de 50 anos. Guarapari era o principal polo de extração.

TRIGO, SOLDADOS E AREIA

A partir da década de 40, acordos oficiais entre Brasil e Estados Unidos consolidaram o que já era feito por empresas privadas sem qualquer controle e fiscalização. Getúlio Vargas se comprometeu a enviar a areia monazítica brasileira aos americanos, a preços módicos, como parte da “Política da Boa Vizinhança” entre os dois países.

Parte da elite intelectual brasileira defendia que a matéria-prima fosse mantida no país, e que fosse criada uma política nacional para desenvolvimento da tecnologia nuclear, o que não avançou. Além disso, apesar de inúmeras tentativas, os EUA não concordavam em compartilhar tecnologia e conhecimento atômico com o Brasil. Isso acabou gerando um mal-estar político que culminou com a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) em 1956, para investigar os interesses brasileiros em torno dos acordos com os EUA.

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Em outras negociações, foram trocadas toneladas de areia por trigo americano. Documentos mostram que o acordo favorecia somente a potência americana. O Brasil chegou a tentar enviar mais tório beneficiado em usinas locais, como forma de garantir mais lucros. No entanto, em uma manobra política, os Estados Unidos passaram a taxar a entrada do tório beneficiado em 33%, inviabilizando o envio por parte do Brasil. A areia monazítica bruta, por sua vez, não era taxada.

Em um terceiro momento, o Brasil foi forçado a se decidir entre enviar tropas aliadas para a Guerra da Coreia, em 1951, ou se comprometer a enviar mais areia monazítica e outras “matérias-primas estratégicas” para os portos norte-americanos. Parte da imprensa da época, de forte apelo nacionalista, chegou a tratar o assunto como um escândalo, com a pergunta “areia ou carne para canhão?”.

Em torno de toda a polêmica, homens ficaram milionários com a exploração da areia capixaba, enquanto que operários que trabalhavam diretamente com ela sofriam com baixos salários e jornada exaustiva. Do outro lado do continente, essa areia alimentava a sedenta indústria nuclear americana durante a Guerra Fria. Bombas de Urânio 233, produzidas a partir do tório extraído no Brasil, foram lançadas durante testes em 1956, segundo os arquivos das forças armadas americanas. No entanto, não há informações sobre quantas bombas foram produzidas e podem estar armazenadas até hoje em território americano, representando a participação do Brasil em uma guerra nuclear cujo acesso a informações até hoje é restrito.

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O BARÃO DA MONAZITA

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Boris Davidovitch durante audiência da CPI da energia atômica, em 1956. Foto: Tribuna da Imprensa

Um só homem foi acusado por grande parte da imprensa brasileira e deputados de ter faturado milhões de dólares em Guarapari com a extração de areia monazítica praticamente de graça, durante quase 30 anos, exportando para diversos países do mundo. Seu nome é Boris Davidovitch.

Natural da cidade de Odessa (então pertencente ao Império Russo, hoje Ucrânia), Boris era também naturalizado norte-americano, francês e brasileiro. Ele chegou ao Brasil em 1940 como procurador da “Société Minière”, empresa francesa que já mantinha a exploração de monazita no Espírito Santo e, em apenas um ano, já era dono de todo o patrimônio radioativo da cidade de Guarapari. A empresa, que mantinha uma exploração modesta desde a década de 20, foi transformada, em 1941, na Mibra – Monazita Ilmenita do Brasil, o que lhe rendeu um processo criminal na França por peculato, arquivado anos depois por falta de provas.

Boris possuía diversas ações na empresa e conseguiu uma procuração que daria plenos poderes sobre a Minière no Brasil. O russo vendeu a empresa e abriu uma nova, a Mibra, usando todo o patrimônio da Minière, só que com ele no comando. Por isso, foi acusado de vender ações que não eram dele e chegou a responder a um processo por peculato na França, arquivado anos depois.

Davidovitch chegou a possuir até cinco empresas diferentes no mundo todo relacionadas à extração e beneficiamento de areia monazítica no Estado e não pagou quase nada de impostos aos cofres públicos. Em 1955, por exemplo, apesar de já possuir um império de exportação de monazita, declarou faturamento de apenas Cr$ 15.000, quantia considerada fora dos padrões para uma empresa mineradora. Os documentos foram apresentados durante a CPI da Energia Atômica, criada para investigar o caso em 1956, e da qual Boris foi intimado a depor.

As empresas do barão da monazita cobriam a totalidade do processo de extração e beneficiamento da areia. A IMOCAP, por exemplo, tratava das concessões de terra, comprando loteamentos estratégicos que poderiam conter o mineral. Em seguida, uma segunda empresa, de tratores, fazia a limpeza do terreno. Outra ainda montava as instalações e maquinário para o beneficiamento, até que chegava a Mibra, que ensacava e exportava. Para o transporte era utilizada a CENES, que possuía uma pequena frota de navios. Além disso, outra empresa de Boris, a Inaremo, fazia o beneficiamento da areia, extraindo o tório.

Boris Davidovitch também era acionista da “Lindsay Light and Chemicals”, empresa americana que comprou monazita da Mibra durante vários anos. Ou seja: no final das contas, o russo vendia dele para ele mesmo com a finalidade de se livrar de taxações de exportação e outros impostos por parte do governo brasileiro.

Estima-se que Davidovitch tenha revirado mais de 70 quilômetros de praias, destruindo restingas em Muquiçaba, Castanheiras (Guarapari),  Mãe-bá e Ubu (Anchieta), e outras praias, deixando apenas crateras no lugar. A empresa conseguia retirar até 36 toneladas por dia no auge de suas atividades. Durante todos esses anos, as exportações ocorriam pelos portos de Guarapari, Vitória e Rio de Janeiro.

Até o ano de 1956, ano em que foi instaurada uma CPI na Câmara dos Deputados para investigar denúncias de corrupção e clandestinidade na extração da monazita, todo a areia extraída e o tório extraído a partir dela desde o século anterior, além de outras terras raras, teriam um valor estimado de 227 bilhões de dólares. Enquanto isso, Boris pagava cerca de Cr$ 0,80 de imposto à prefeitura do município por ano desde que começou a atuar na cidade, segundo denuncias da própria prefeitura de Guarapari feitas ao jornal Tribuna da Imprensa (RJ).

As terras raras são 17 elementos químicos agrupados em uma família na tabela periódica porque ocorrem juntos na natureza e são quimicamente muito parecidos. Os nomes são: lantânio, neodímio, cério, praseodímio, promécio, samário, európio, gadolínio, térbio, disprósio, hólmio, érbio, túlio, itérbio, escândio e lutécio.

“Nasci e criei-me aqui. Nunca vi esse homem fazer qualquer coisa em benefício dessa terra”, protestou ao jornal o prefeito Epaminondas de Almeida, em 1956. Epaminondas assumiu a prefeitura após seu antecessor, Edizio Cirne, ser afastado porque deu uma “bofetada” na cara de Boris. O empresário queria brigar na justiça pela exploração das areias da praia da Areia Preta, mas o prefeito disse que defenderia a praia “até debaixo de bala”.

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Barracão da Inaremo, onde o tório era separado da areia

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Vista da Prainha de Muquiçaba, com o galpão da Mibra à frente, na década de 1940

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Navio suíço no antigo porto da cidade

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O navio Fjord foi um dos mais ativos no transporte de monazita em Guarapari

INVESTIGADO

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A influência de Boris Davidovitch se dava além do mundo empresarial. Enquanto um dos homens mais ricos do país, ele gozava também de boa influência política e usava métodos nem sempre lícitos para conseguir o que queria.

Na CPI da Energia Atômica de 1956, foram apresentadas correspondências mostrando que ele subornou juízes e desembargadores para julgar demandas de terras em que ele estava interessado. O russo, em depoimento, reconheceu a legitimidade dos documentos.

Ele também insinuou comprar os jornais O Globo e Tribuna da Imprensa para que deixassem de atacá-lo. “Os jornalistas ficaram muito insatisfeitos com o passeio que fizeram e vamos ter que comprar O Globo e A Tribuna de Imprensa pra ver se vão falar alguma coisa”, escreveu em uma das correspondências analisadas pela CPI.

TRABALHO ESCRAVO

Durante a mesma CPI, deputados, técnicos e jornalistas visitaram as instalações da Mibra em Guarapari e descobriram diversas irregularidades. Faltavam livros de controle e o fiscal designado pelo Governo não sabia identificar as diferentes areias por cor. O fiscal sequer tinha autonomia para fiscalizar, visto que morava em um apartamento bancado pela própria Mibra.

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Notícia de junho de 1956 relata a visita de deputados da CPI da Energia Atômica e jornalistas a Guarapari, onde constataram indícios de trabalho escravo e falta de fiscalização nas atividades da Mibra. Fonte: Imprensa Popular / RJ

A denúncia mais grave, no entanto, foi a de trabalho escravo. Segundo relatou a jornalista Maria da Graça, do periódico carioca Imprensa Popular, “os 27 trabalhadores tinham ausência total de cor nas faces e lábios, magreza doentia, olhar mortiço, mãos e pés de coloração anormal devido ao constante contato com a umidade da areia. Todos descalços e semi-nus, vestidos apenas de calções esfarrapados”. Ela foi uma das repórteres de diversos jornais que acompanharam a visita da CPI às instalações da Mibra em Guarapari.

Um médico do Ministério do Trabalho verificou as condições insalubres e identificou anemias, câncer e erosão de pele em muitos trabalhadores.

Na ocasião, o sindicato da categoria explicou à imprensa que os trabalhadores aceitavam as condições de trabalho porque, fora do verão, a Mibra era a única que empregava os homens de Guarapari.

Segundo Dr. Antônio da Silva Mello, médico que descobriu e popularizou o uso terapêutico das areais monazíticas, a Mibra era a única empresa que empregava os moradores de Guarapari, mas mantinha seus funcionários em condições precárias. “A Mibra funcionava dia e noite, tendo três turnos de operários que recebiam salários miseráveis e desconheciam a utilização e para onde era levadas as areias”, afirmou Silva Mello em seu livro “Guarapari – Maravilha da Natureza”.

Boris também afirmou em depoimento à CPI que exportou cerca de 10.000 toneladas de monazita para os Estados Unidos mesmo depois de uma lei promulgada em 1951, que proibia a exportação por empresas privadas.

A Lei Federal n°1310 proibiu a exportação de monazita bruta num esforço de tentar despertar o interesse de empresas nacionais em beneficiar o material. Assim, os sais de terras raras seriam exportados enquanto o tório, considerado mineral estratégico, seria mantido no Brasil.

Mesmo com a lei em vigor, as exportações ilegais continuaram.

MORTE MISTERIOSA

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Boris Davidovitch faleceu no dia 20 de setembro de 1960. Segundo informações extra-oficiais, ele morreu de infarto após desembarcar no aeroporto Charles de Gaule, em Paris.

Após a morte de Davidovitch, as atividades da Mibra foram encerradas. A pesquisadora Beatriz Bueno, autora do livro “Guarapari, muito mais que um sonho lindo”, conversou com antigos trabalhadores da empresa. Eles relatam que assim que a morte do barão da monazita foi decretada, houve ordens para queimar todos os documentos da empresa e enterrar maquinários na areia.

O OUTRO BARÃO

Além da Mibra, outra empresa atuava na extração e beneficiamento de monazita e ilmenita no Espírito Santo: a Orquima (Indústrias Químicas Reunidas), com sede em São Paulo. Seu proprietário, Augusto Frederico Schmidt, também foi convocado a depor na CPI da Energia Atômica, quando se recusou a divulgar os nomes dos principais acionistas da empresa à época. Schmidt era bastante influente no meio político, foi assessor direto e amigo pessoal do presidente Juscelino Kubitschek e, depois, do general Humberto Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura militar.

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Augusto Frederico Schmidt, dono da Orquima, comandava a extração de areia monazítica no Norte do Espírito Santo e era um defensor da livre exportação do material

Enquanto que a Mibra de Boris concentrava a exploração de monazita ao Sul do Espírito Santo, a Orquima obteve licença para extração na faixa que seguia de Vitória até o extremo norte capixaba, em Conceição da Barra, além do Sul da Bahia. As jazidas com maior atividade ficavam em Carapebus, na Serra, mas também há registros de retirada de areia até mesmo na Praia do Suá (Vitória), Nova Almeida, Regência (Linhares) e São Mateus. Mais tarde, a empresa também explorou areias de Ponta da Fruta, em Vila Velha.

Mibra e Orquima chegaram a atuar em conjunto e eram representadas pelo mesmo advogado. Schmidt dotava de grande influência internacional e não escondia sua posição favorável à exportação de terras raras (como a monazita) por empresas privadas, mesmo após decretos presidenciais da década de 50.

O relatório final da CPI da Energia Atômica, de qualquer modo, acabou por não atingir criminalmente nenhum dos empresários denunciados por fraude na exploração de monazita no Brasil, nem autoridades ligadas aos escândalos de suborno e corrupção revelados pelas cartas de Boris Davidovitch.

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Dados do Departamento do Interior dos EUA mostram o volume de areia extraído em 62 anos pelos principais produtores. Estima-se que pelo menos o dobro desse total tenha sido transportado clandestinamente

Ainda assim, o trabalho da CPI ajudou a jogar luz sobre uma atividade que já durava décadas, com fiscalização precária, denúncias de corrupção e acordos internacionais que prejudicavam o Brasil. O relatório final da CPI foi primordial para criar uma política nacional de energia atômica, embora a maior parte das jazidas de monazita e outras terras raras já estarem esgotadas na época.

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Reportagem de Edmar Morel para o Última Hora em 1957 retratava a condição degradante dos trabalhadores de Guarapari

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O jornal carioca Tribuna da Imprensa tratou a CPI de 1956 como um escândalo nacional de corrupção

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O mesmo jornal acompanhou os deputados e constatou que o fiscal do governo não sabia sequer diferenciar monazita de outras areias

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O repórter do Diário da Noite, Antenor Novais, viajou a Guarapari para constatar a total falta de controle na exploração do tório de Guarapari

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Denúncia do deputado capixaba Anibal Soares, representando a ala nacionalista política, de que o tório chegava a ser mais caro que o ouro nos EUA, mas era declarada a preço de banana pela Mibra no Brasil

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Reportagem do “Diário da Noite” de 1956 comparava o esquema americano de proteção ao minério com o descaso em Guarapari na proteção do mesmo patrimônio

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Nova reportagem denuncia o aumento do embarque da areia do Espírito Santo, muitas vezes feito durante a madrugada

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O Última Hora de dezembro de 1956 destacava que a “praia mais famosa do Brasil” estava abandonada pelo poder público, sem qualquer fiscalização da extração de areia. Diversos jornalistas viajaram para a cidade para cobrir a polêmica das areias radioativas exportadas sem controle

O PRIMEIRO EXPLORADOR

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O potencial das areias monazíticas brasileiras foi descoberto ainda no final do século XIX. Várias publicações apontam o engenheiro americano John Gordon como o primeiro a olhar para as areias das praias do sul da Bahia e perceber uma diferença de coloração com relação a outros lugares do litoral.

Gordon, funcionário da empresa britânica de exportação de café Edward Johnston & Co., recolheu amostras da areia e as enviou para o professor francês Henrique Gorceix, fundador e então diretor da conceituada Escola de Minas de Ouro Preto. Após análise, Gorceix informou em relatório que as areias continham algum tipo de minério, mas desconhecia qualquer uso industrial.

De posse do relatório, John Gordon foi a Europa procurar interessados em comprar o tal mineral brasileiro e encontrou o austríaco Carl Auer von Welsbach, criador de um sistema de lâmpadas incandescentes a gás que iluminou a Europa durante vários anos. Ele descobriu que o óxido de tório era o melhor material para produzir uma luz forte e duradoura, e encontrou em John Gordon o grande vendedor de areia.

Enquanto a iluminação elétrica ainda dava os primeiros passos na Europa, tanto a Auer Light quanto diversas outras empresas europeias que fabricavam luminárias a gás passaram a encomendar areia monazítica para a retirada do tório. Na época, a maior parte da areia era extraída no balneário de Cumuruxatiba, na região de Prado, Sul da Bahia.

John Gordon viu uma oportunidade de negócios e conseguiu do governo brasileiro autorização para mapear e identificar em que locais da costa havia a ocorrência desse tipo de areia e explorá-la.

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O sistema de iluminação a gás criado pelo austríaco Carl Auer usava óxido de tório, derivado da monazita. A demanda pela areia brasileira aumentou bruscamente. As lâmpadas eram usadas na iluminação pública de grande parte da Europa e também dos Estados Unidos. O principal vendedor, John Gordon, retirava areia do Sul da Bahia e fugia dos impostos atuando na clandestinidade. Muitas vezes encheu navios declarando que a areia serviria apenas como lastro.

A reportagem do Gazeta Online encontrou registros de jornais brasileiros que relatam, entre 1880 e 1910, atos do Poder Executivo brasileiro concedendo a John Gordon inúmeras porções de terra com areia monazítica. Há registros também de acusações contra o americano por ter subornado governantes e tomado terras de outros homens, sobretudo no Sul da Bahia. Para convencer o governo de que sua proposta era vantajosa, ele alegava que as areias eram um bem infinito, com grande potencial de exploração e sem grandes impactos à natureza. Seja por má-fé ou falta de conhecimento técnico, as autoridades brasileiras acabaram aceitando as propostas de Gordon, que pagava menos pela posse das terras do que os antigos donos. Ele também ficou milionário com a exploração.

AREIA CAPIXABA

A areia monazítica de Guarapari só foi descoberta em 1898 e, oito ano depois, foi instalada a empresa franco-brasileira Société Minière Industrielle Franco-Brasilienne.

A “Minière”, que funcionava à beira do porto de Guarapari – onde hoje existe uma praça – retirava areia monazítica da praia e do fundo do mar e separava, através de eletroímãs e lavagem, a monazita (dourada), a ilmenita (preta), a zirconita (cinza) e a granada (vermelha). O material era ensacado e carregado em navios com destino à França.

CONTRABANDO E “TESTAS-DE-FERRO”

Contando com o monopólio da exploração de monazita no Brasil e gerenciando a extração das areias de Cumuruxatiba e Prado, na Bahia, John Gordon colocava “testas-de-ferro” para liderar a empresa em Guarapari. Diversos registros, no entanto, colocam em dúvida a legalidade das suas atividades.

Segundo a pesquisadora Beatriz Bueno, John Gordon explorou e exportou ilegalmente areias monazíticas das praias de Guarapari dentro de navios, disfarçadas de lastro. “Diversas embarcações que não tinham nada para fazer em Guarapari estacionavam na nossa praia e pegavam a areia com a desculpa de fazer peso nos porões. Nós fomos saqueados durante anos”, conta Beatriz. A prática de encher navios vazios de areia já era feita por Gordon no Sul da Bahia.

Os navios Mercator e Fijord foram presença fiel no porto de Guarapari durante as várias décadas de exploração da areia monazítica. O jornal carioca Última Hora, em reportagem sobre a extração ilegal das areias em 1948, conversou com moradores de Guarapari que confirmaram que as duas embarcações, a primeira de bandeira sueca e a segunda norueguesa, aportavam regularmente no cais e eram carregados com sacos de areia monazítica sem qualquer fiscalização.

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No acordo com o Brasil, a empresa pagava 4% do preço de exportação ao nosso governo. Porém, o governo de Guarapari arcava com parte dos custos de extração. Sobrava, então, pouco mais de 1% do preço da venda para o município.

Além disso, a areia que seguia para a Europa e Estados Unidos eram declaradas a preços três vezes mais baixos do que o praticado pelo mercado internacional. No início do século XX, o quilo do nitrato de tório era vendido a US$ 500 nos Estados Unidos. Com a areia brasileira clandestina, o preço caiu drasticamente.

Ao jornal Imprensa Popular, em 1956, o Deputado capixaba José Cupertino de Almeida denunciou a baixa taxa de impostos cobrados pela exploração da areia monazítica de Guarapari. “É doloroso registrar que o município de Guarapari possui uma das maiores reservas de minerais atômicos do mundo e, no entanto, é um dos municípios mais pobres do país”.

A ORIGEM DO INTERESSE ATÔMICO

Com a popularização da energia elétrica, a partir de 1920, a exportação da monazita sofreu uma queda, até que as pesquisas sobre energia atômica se intensificaram no período da Segunda Guerra Mundial e na Guerra Fria. A monazita foi, então, recolocada em evidência por conter tório, elemento radioativo do qual é possível fabricar o urânio-233.

O PROJETO MANHATTAN

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Bomba de Urânio-233 lançada em 1956 durante testes no deserto de Nevada, nos Estados Unidos

Passados 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial, não há documentos que comprovem que a areia monazítica de Guarapari e de outras regiões brasileiras foi usada especificamente nas bombas lançada sobre Hiroshima e Nagasaki. Pelo contrário: sobre esse assunto restam mais provas contrárias, uma vez que o elemento base da bomba batizada de Little Boy era o Urânio-235 (U-235), e não o U-233 gerado a partir do tório das areias. Já a bomba que caiu sobre Nagasaki tinha como base o Plutônio.

De qualquer moddo, o Urânio-233 chegou a ser usado em pesquisas do Projeto Manhattan, uma iniciativa ultra-secreta voltada para o desenvolvimento de armas nucleares pelo governo americano.  Oficialmente, bombas de U-233 só foram produzidas por volta de 1950, durante a Guerra Fria, quando havia um grande temor por parte dos norte-americanos de que a União Soviética estivesse produzindo suas próprias armas nucleares.

É aí que a monazita brasileira assume papel estratégico para os EUA. Os americanos já dominavam a fissão do U-233 e o envio da areia que já acontecia há anos se intensificou ainda mais.  O alto escalão político do governo de Franklin Roosevelt tratou de negociar com o governo de Getúlio Vargas para conseguir o embarque do maior volume possível de monazita para os Estados Unidos. O maior ponto de extração era Guarapari. Para tanto foram enviados embaixadores e comissários americanos para conversar diretamente com assessores e ministros de Vargas. A maior parte das visitas está documentada no livro oficial do Projeto Manhattan, disponível para consulta no site das Forças Armadas americanas.

A Índia, outro grande proprietário de terras ricas em tório, suspendeu completamente as exportações para desenvolver sua própria tecnologia atômica, dez dias após o fim da Segunda Guerra Mundial. Isso ajuda a justificar o interesse ainda maior dos americanos pela monazita brasileira.

O envio – clandestino ou oficial – perdurou fortemente por pelo menos mais 15 anos. O fato é que o Urânio-233 ganhou destaque em um projeto de pesquisas em armas nucleares, batizado de Operação Teapot. Ao todo, 14 bombas foram lançadas em pontos do deserto de Nevada, nos EUA, sendo que algumas tinham como base o U-233, combinado com Plutônio. Tudo documentado pelo exército, com fotos e vídeos. O total de bombas desenvolvidas durante o projeto, porém, é desconhecido.

Veja um dos vídeos produzidos durante a Operação Teapot

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Teste com bomba de U-233 durante a Operação Teapot, 1955. Todas as fotos desta galeria pertencem ao Departamento de Estado norte-americano

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Teste com bomba de U-233 durante a Operação Teapot, 1955

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Observadores acompanham o lançamento de bomba no deserto de Nevada

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Destroços analisados após queda de bomba-teste em Nevada, 1955

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Teste com bomba de U-233 durante a Operação Teapot, 1955

A BOMBA BRASILEIRA

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Almirante Álvaro Alberto (ao centro), primeiro representante brasileiro na Comissão de Energia Nuclear da ONU e fundador do CNPq, defendia o intercâmbio de conhecimento atômico com outros países, ideia fortemente combatida pelo governo americano

A questão nuclear brasileira começou no primeiro governo Vargas e refletiu durante muitos anos o papel do Brasil como exportador de matérias primas em detrimento do desenvolvimento de produtos e tecnologias.

Apesar do potencial nuclear das areias monazíticas de Guarapari ter sido descoberto por volta de 1890 por empresas estrangeiras, foi apenas em 1940 que o governo brasileiro começou a voltar a atenção para os recursos nucleares do país.

Neste ano foi firmado com os EUA um Programa de Cooperação para a Prospecção de Recursos Minerais que possibilitou a identificação de depósitos de areias monazíticas localizados entre São Francisco de Itabapoana (RJ) e Guarapari (ES).

Em 1945, foi assinado o primeiro acordo com os Estados Unidos, que previa um fornecimento de 5.000 toneladas anuais de monazita e que poderia ser prorrogável por até dez vezes. Três anos depois, o Conselho de Segurança Nacional denunciou o acordo alegando que não havia nenhum retorno de benefício claro dos EUA em troca da monazita. As exportações foram interrompidas demonstrando o primeiro ato de preocupação do governo visando resguardar as matérias-primas nucleares existentes no solo brasileiro.

A Lei 1.310 de 1951, que criou o Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq), estabeleceu o monopólio estatal dos principais minérios atômicos, proibindo a exportação de urânio e tório, a não ser por autorização expressa do governo.

O CNPq, através do almirante Álvaro Alberto, propunha uma política nacional de energia nuclear com planos de produção de urânio enriquecido, construção de reatores e busca de apoio científico e tecnológico em outros países além dos Estados Unidos. Os detalhes do acordo foram descritos pelo pesquisador Kurt Rudolf Mirow, no livro “Loucura nuclear: os enganos do Acordo Nuclear Brasil Alemanha”.

Para o CNPq, o material radioativo só poderia ser exportado caso houvesse uma compensação específica: o material seria trocado por conhecimento tecnológico para a criação de reatores nucleares. No entanto, essa demanda ia contra a Lei McMahon dos Estados Unidos, que protegia todos os conhecimentos associados à energia nuclear.

O almirante passou, então, a procurar e propor acordos com outros países que fossem mais vantajosos para o Brasil. Ele defendia, notadamente, uma cooperação com a República Federal da Alemanha, que estava pesquisando uma maneira alternativa de enriquecimento de urânio.

Assim, foi feito um acordo secreto com a Alemanha para instalação de três equipamentos de enriquecimento de urânio no Brasil, apesar da eficácia do método pesquisado pelos alemães estar longe de ser comprovada.

Após a compra das máquinas e do treinamento de centenas de pesquisadores, a suspeita se confirmou: o processo por jet-nozzle usado pelos alemães era altamente complexo, e totalmente inviável para os fins que o Brasil desejava. Uma sabotagem também prejudicou os planos de Álvaro Alberto: contrários a qualquer acordo paralelo, os americanos conseguiram barrar o envio das centrífugas alemãs poucos dias antes do embarque para o Brasil.

Oficialmente, é aí que termina a primeira tentativa do governo brasileiro de adquirir a tecnologia para a produção de reatores nucleares. No entanto, sempre houve a suspeita de que o verdadeiro motivo do acordo com a Alemanha era adquirir a tecnologia para a bomba atômica.

A pesquisadora Tânia Malheiros, autora de “Brasil: A Bomba Oculta – O Programa Nuclear Brasileiro”, afirma que o governo manteve dois programas nucleares: o oficial, com fins pacíficos, e o paralelo e sigiloso. Sempre houve facções do regime que defendiam que a única maneira do Brasil ser respeitado no mundo seria ter a bomba.

A Constituição de 1988 havia proibido o país de usar a tecnologia nuclear para fins bélicos, mas o “esforço paralelo” dos militares sobreviveu até 1990, segundo confirmou mais tarde José Carlos Santana, ex-presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear no governo Collor.

Para Marcos Tadeu, físico e pesquisador das areias monazíticas de Guarapari,  o tório capixaba chegou a ser usado nesse esforço paralelo dos militares, mas se provou pouco eficaz e foi abandonado alguns anos depois.

A suspeita de que o Brasil trabalhava secretamente em uma ogiva nuclear tornou-se mais intensa na segunda metade da década de 1980. Uma série de reportagens da mídia nacional revelou aspectos secretos do programa atômico. Isso só fez aumentar os rumores sobre um possível teste nuclear brasileiro.

A maior comprovação do esforço para criação de uma ogiva nuclear, porém, só veio no final dos anos 80. O jornal Folha de São Paulo expôs a construção de instalações subterrâneas que “se prestam a testes nucleares diversos” na Serra do Cachimbo, no Sul do Pará. A área era militar, delimitada por decreto durante o governo Geisel. Na época o presidente José Sarney negou que o espaço fosse utilizado para esses fins.

Em 1990, porém, em entrevista ao programa Fantástico, da Rede Globo, Sarney contou que, ao assumir o governo, descobriu que havia instalações nucleares na Serra do Cachimbo.

Pouco depois, ele jogou uma simbólica pá de cal num poço de 320 m para testes nucleares e ordenou sua destruição.


A pesquisadora Beatriz Bueno explica... por GazetaOnline

O FIM DA EXPLORAÇÃO

A partir da morte de Boris Davidovitch, a exploração de terras raras passou a ter um controle maior do Estado e a sede da Mibra em Guarapari se transformou na empresa Nuclemon, subsidiária da estatal Nuclebrás, criada para concentrar a exploração desse tipo de material para interesses industriais.

A Nuclemon continuou extraindo areia monazítica e beneficiando seus derivados por mais de 20 anos, até a década de 80, quando uma nova campanha capitaneada pelo então prefeito de Guarapari, Graciano Espíndula, propunha o fim definitivo da exploração da areia na cidade e mais investimentos em turismo e infraestrutura, tornando o balneário atrativo para tratamento de pessoas com diversas doenças, sobretudo reumáticas. “Se Cleveland (EUA) é a referência mundial em cardiologia, Guarapari será referência em reumatologia”, declarou o prefeito em maio de 1983, em entrevista ao jornal A Gazeta.

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O prefeito de Guarapari, Graciano Espíndula, concede entrevista em 1983 ao jornal A Gazeta, dando sua versão da briga judicial travada pelo fim da exploração de areia na cidade. Entrevista à repórter Maura Fraga. Foto: Helô Santana

Na época os benefícios das areias radioativas de Guarapari para tratamento de doenças já eram bastante difundidos, e a cidade recebia turistas de diversas partes do Brasil e do mundo entre os meses de março e junho. Uma série de reportagens publicadas por A Gazeta mostrava histórias de gente que buscou Guarapari para se tratar e acabou adotando o local como residência. Também não faltavam relatos de pessoas creditando a cura de diversas doenças ao tratamento feito com a areia das praias.

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Diretor da Nuclemon, Delzo Marques, se posiciona sobre a permanência da empresa em Guarapari por mais três anos. A Gazeta, 7 de maio de 1983

O próprio prefeito lembrou que uma história de infância o marcou profundamente e serviu como estímulo para entrar na briga contra a exploração da areia na cidade. “Lembro-me que vi um homem completamente paralítico descer de um barco e sendo transportado para o outro lado da cidade, quando ainda não havia a ponte de Guarapari. Depois descobri que se tratava do secretário de Estado de Minas Gerais, vítima de reumatismo crônico, em busca da cura nas areias monazíticas. Ele estivera na Europa para tratamento, sem resultado. Meses depois, vindo da escola, vi aquele homem descer de um bonde, aqui mesmo em Vitória, sem a ajuda de ninguém, e seguir rua afora. Essa imagem ficou gravada na minha memória”, declarou Graciano, que se julgava um profundo interessado nas propriedades medicinais das areias da cidade e era, por muitos, taxado de sonhador.

Por outro lado, a continuação das atividades da Nuclemon deixava grandes buracos pela cidade e incomodava autoridades e moradores. A areia extraída na cidade era enviada para uma usina em São Paulo, de onde se retirava diversos elementos para fabricação industrial, de eletrodos a fibras de vidro, indústria de lentes, de televisores, além do próprio tório, de interesse da Comissão Nacional de Energia Nuclear.

NA JUSTIÇA

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Médico, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras, Antonio da Silva Mello é considerado o maior divulgador das belezas de Guarapari e das propriedades medicinais das areias monazíticas. Vários de seus artigos circularam o mundo na primeira metade do século passado

O caso foi parar na Justiça Federal após a denuncia da prefeitura de que a a Nuclemon estava extraindo areia em terrenos ilegais e destruindo trechos da Rodovia do Sol e de praias onde a exploração já havia sido embargada por leis do próprio município, como Areia Preta, Praia dos Namorados e Praia do Morro.

Diante da batalha judicial, a Nuclebrás alegou que o trabalho em Guarapari era estratégico para os interesses nacionais, uma vez que somente a cidade capixaba era responsável por 20% de toda a produção de minerais pesados do Brasil. A empresa conquistou o direito de seguir explorando as areias de Guarapari por mais três anos, encerrando suas atividades de uma vez por todas em 1986.

A partir daí, o município consolidou seu lema de “Cidade-Saúde” e passou a receber cada vez mais turistas interessados nas areias medicinais. As praias se urbanizaram e a estrutura hoteleira melhorou. A cidade incrementou sua vocação turística e hoje chega a receber mais de um milhão de visitantes durante o verão. Talvez parte de um sonho idealizado pelo médico Antônio da Silva Mello a partir de 1930, de que aquela antiga vila de pescadores guardava um tesouro para a medicina e para a cura de milhões de pessoas por meio de suas areias radioativas.

Os artigos de Silva Mello rodaram o mundo, e atraíram estudiosos e curiosos para o balneário capixaba desde então.

AREIA TRATAVA CÂNCER

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Na França, o laboratório de Marie Curie (1867-1934), ganhadora de um Prêmio Nobel por seus estudos em radioatividade, foi um dos que usou areia monazítica de Guarapari em seus estudos

Nos arquivos público franceses, mais de 210 documentos entre cartas, pedidos de material e recibos ligam a Société Minière Industrielle Franco- Brésilienne, precursora da Mibra, em Guarapari, a diversos laboratórios franceses e alemães.

A maioria dos contatos são de compra, venda e aluguel de tubos de Tório entre a empresa e o Institut du Radium, laboratório presidido pela ganhadora do prêmio Nobel de Química, Marie Curie. Ela e o marido, Pierre, foram responsáveis pela descoberta da radioatividade e por ter dedicado a vida às pesquisas sobre o uso terapêutico dos materiais radioativos.

As trocas aconteceram entre os anos de 1911 e 1934.

Segundo o estudo “Marie Curie and the Radium industry” do pesquisador Xavier Roqué, a partir de 1903 o uso na medicina de materiais radioativos foi popularizado na França, o que fez aparecer um mercado de extração de materiais radioativos pelo mundo. O material era usado em centros de tratamento de câncer tanto em Paris quanto em outras cidades. Na capital Francesa, a Société Minière et Industrielle Franco-Brésilienne mantinha um escritório no número 20 do boulevard Montmartre, e uma usina de tratamento de tório e outos materiais radioativos na cidade de Clichy. Por questões de segurança, nos anos 80, a usina foi demolida e enterrada pelo governo francês.

Já os pesquisadores Bernward Joerges e Terry Shinn, autores do estudo “Instrumentation Between Science, State and Industry”, a Minière foi criada, inclusive, com a supervisão da pesquisadora Marie Curie para fornecer material e logística ao seu laboratório, assim como outros laboratórios e empresas da Europa, principalmente da Inglaterra e Alemanha.

Além da pesquisa, os laboratórios utilizam o tório na fabricação de aparelhos de radioterapia e de sais luminosos (material fosforescente usado em pinturas e em agulhas).

Marie Curie visitou o Brasil em 1926, atraída pela fama das águas radioativas do Termas de Lindóia, em São Paulo. Na época, o local já era conhecido como terapêutico. Curie visitou o local durante um dia.

A visita às terras brasileiras, no total, durou mais de 40 dias. Madame Curie esteve em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, onde visitou o primeiro hospital brasileiro especializado em tratamento de câncer com uso de radiação. Marie Curie faleceu em 1934, depois de muitos problemas de saúde, provavelmente em razão da contínua exposição à radiação.

O LIXO NA LATINHA

Afinal, o que teria acontecido com as toneladas e mais toneladas de tório exportados para os Estados Unidos principalmente durante a Guerra Fria? No final das contas, o que restou delas agora é encarado como problema de segurança nacional e opinião pública.

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Exemplos de compartimentos onde o urânio-233 está armazenado, sob a forma de pastilhas e óxido, entre outras. Foto: DOE-USA

Pouco mais de 1.500 quilos de Urânio-233 criado a partir do tório – e que chegou a ser testado em bombas e reatores na década de 1950 – está agora armazenado em latas e tubos em um depósito do governo americano no estado de Tennessee. Novas tecnologias nucleares mais seguras tornaram obsoleta a pesquisa com U-233 há várias décadas. Sem serventia, o governo decidiu transportar esse material para um túnel de armazenamento de lixo nuclear em Nevada, justamente onde as bombas atômicas eram testadas, perto de Las Vegas.

A iniciativa, com custo estimado de 500 milhões de dólares, mobiliza a opinião pública nacional e sobretudo da população de Nevada, sendo alvo constante de protestos de ativistas. No entanto, testes para o transporte foram iniciados em maio de 2015, e o envio pode acontecer a qualquer momento. O urânio-233 armazenado é considerado de “baixo nível de risco” pelas autoridades americanas.

Robert Alvarez, especialista em estudos políticos e consultor do Departamento de Energia dos Estados Unidos durante o governo de Bill Clinton, estima que 200 toneladas de u-233 foram produzidas a partir de 800 toneladas de tório entre 1954 e 1970, nos EUA. O custo dessa produção pode variar entre US$ 5,5 e US$ 11 bilhões de dólares.

A constatação de diversos especialistas americanos é de que a corrida nuclear durante a Guerra Fria acabou gerando estoques de matéria-prima e materiais processados que hoje geram apenas dor-de-cabeça para o governo. Um exemplo emblemático disso é justamente o tório enviado das praias brasileiras e o urânio de laboratório produzido a partir dele.

Algumas correntes chegam a especular sobre o perigo desse material radioativo nas mãos de nações ou grupos com interesses bélicos. Outros cientistas defendem a teoria de que reatores de tório podem ser soluções viáveis para a geração de energia elétrica atualmente. De qualquer modo, a constatação de que toneladas e mais toneladas de areia exportada durante décadas acabam por se tornar um problema envolvendo latinhas de lixo radioativo é, no mínimo, curiosa.

EM CHICAGO, AREIA FOI USADA EM ATERRAMENTOS

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Vista da região de Streeterville, a oeste de Chicago, onde boa parte do bairro foi aterrado com areia monazítica ao longo do século XX. Foto; Matt Howry / Flickr / creative commons

Sede da Lindsay Light & Co, a maior compradora norte-americana da areia monazítica capixaba, a cidade de Chicago também vive hoje um impasse em relação ao que sobrou da matéria prima usada pela empresa, que utilizou o tório primeiramente para fabricação de lâmpadas e, mais tarde, foi a principal fornecedora do material para os projetos secretos de construção de bombas atômicas.

Reportagens de diversos jornais de Chicago nos últimos anos relatam que, após feita a separação do tório, a areia que sobrava era vendida para utilização em aterros. Assim, a região de Streeterville, fortemente industrializada na época, recebeu toneladas de aterro radioativo para construção de novos prédios e fábricas. Ninguém sabe exatamente quando a venda da sobre de areia foi encerrada pela Lindsay Light, mas o bairro passa atualmente por uma modernização e a construção de novos edifícios residenciais, hotéis e condomínios de luxo levanta o risco à saúde ao se revirar a areia radioativa.

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Local onde foram depositadas toneladas de areia pela Lindsay Light Co, a maior compradora da areia brasileira. Foto: Illinois Emergency Management Agency

Em entrevista ao jornal Chicago Tribune, representantes da Agência de Proteção Ambiental dos EUA informaram que a inalação de poeira contaminada por tório aumenta o risco de desenvolver câncer de pulmão e pâncreas. Grupos ativistas lutam há pelo menos 20 anos pelo desenvolvimento de projetos para retirar completamente a areia da cidade.

Em uma década, uma ação para retirar a areia contaminada retirou 13.500 toneladas do material de diversos terrenos de Chicago. A areia é enviada para um aterro licenciado a trabalhar com resíduos radioativos, em Utah. As multinacionais que assumiram o controle da Lindsay Light fizeram acordos com a Justiça e se comprometeram a injetar recursos para auxiliar na limpeza desses terrenos. O custo para retirada de toda a areia é estimado em US$ 121 milhões. A estimativa de governantes é de que quase 150 mil toneladas dessa areia foram despejados em terrenos a oeste de Chicago. Não é difícil presumir que grande parte do polêmico material enterrado em Chicago tenha sido retirado de Guarapari. Em seu depoimento à CPI da Energia Atômica, Boris Davidovitch havia declarado que o principal cliente da Mibra era justamente a Lindsay Light, da qual o próprio Boris possuía participação acionária.

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Mais de 600 casas cujo solo foi aterrado com restos industriais de monazita e tório tiveram de ser limpas ao longo da década passada. Algumas foram desocupadas para a retirada do solo contaminado. A limpeza residencial já foi concluída em Chicago, de acordo com o governo local. Foto: Illinois Emergency Management Agency

Pelo menos seis regiões de Chicago, inclusive residenciais, receberam a areia para aterro. Uma área utilizada pela Lindsay Light ficou conhecida como “montanha de tório” pela grande quantidade de material concentrado. Apesar de boa parte da limpeza já ter sido efetuada, o impasse agora fica por conta do destino do lixo industrial, e não apenas em Chicago: assim como a Lindsay Light, estima-se que pelo menos outras 15 indústrias atuaram na produção de mantas de tório para lâmpadas em diversos Estados americanos, e tenham comprado, em quantidades desconhecidas, areia monazítica no período entre 1900 e 1930.

O grande volume de areia aterrada em Chicago também sugere que a quantidade exportada pelo Brasil é realmente maior do que as 100 mil toneladas declaradas oficialmente. Em 1950, reportagem do jornal Chicago Tribune detalhava a preocupação do setor industrial norte-americano com a possibilidade de uma lei brasileira proibir a exportação de monazita a partir do ano seguinte. Ouvido pela reportagem, Charles Lindsay, proprietário da Lindsay Light, detalhou que havia uma grande corrida pela monazita por conta dos projetos atômicos americanos. Ele alegou que o governo brasileiro estaria fazendo pressão para que Lindsay instalasse uma fábrica no Brasil para tratamento do tório. Ele também declarou ao jornal que “mantinha um grande estoque de areia monazítica nos Estados Unidos”, sem citar, porém, a quantidade.

CURIOSIDADES

  1. Foi na época de bastante movimento no porto de Guarapari que foram criados os hotéis Torium, Radium e Monazita. O Radium foi um casino muito frequentado na década de XX, e símbolo de ostentação da classe mais abastada do Espírito Santo. Hoje está desativado.
  2. Boris Davidovitch é nome de rua na Praia do Morro, em Guarapari, exatamente a mesma onde funcionava a antiga Inaremo. Não é possível precisar a data exata da criação da lei, na Câmara dos Vereadores da cidade, que dá à rua o nome do empresário russo
  3. Augusto Frederido Schmidt, além de proprietário da Orquima, que explorava areia no Norte do Espírito Santo, foi um grande empresário paulista, criador de uma rede de supermercado e firmas industriais. Ele também é criador do famoso slogan “50 anos em 5”, usado na campanha de Juscelino Kubitschek para a construção de Brasília. No entanto, o fato mais curioso é que Schmidt é um dos poetas mais conhecidos da segunda geração do Modernismo brasileiro, com três livros publicados. Assim como Boris Davidovitch, morreu após um infarto fulminante. 
  4. O problema da exploração ilegal de areia monazítica também foi denunciado pela imprensa da Índia, sobretudo por volta de 1990. Reportagens de diversos jornais relatavam que empresas escondiam o volume de areia retirado, exportava sem autorização e causava impacto a comunidades em volta das áreas com maior volume de areia monazítica.
  5. A Índia, aliás, que desde o fim da Segunda Guerra Mundial havia proibido a exportação de terras raras, trabalha atualmente em um reator de tório para geração de energia. A tecnologia também é visada por países como China e Irã. A previsão é de que o reator indiano entre em operação a partir de 2018.
  6. Em 2013, o Brasil negociou a venda de 16 mil toneladas de Torta II,  resíduo radioativo proveniente do tratamento químico da areia monazítica. O comprador foi uma empresa de Taiwan chamada Global Green, que domina técnicas para extrair terras raras desse tipo de resíduo. A alegação na época é de que o Brasil não possui tecnologia para fazer essa extração. O estoque ficava situado na cidade mineira de Caldas. De acordo com as Indústrias Nucleares do Brasil (INB), o material é estocado desde 1940.

REFERÊNCIAS

  • Robert Alvarez (2013): Managing the Uranium-233 Stockpile of the United States, Science & Global Security: The Technical Basis for Arms Control, Disarmament, and Nonproliferation Initiatives, 21:1, 53-69; disponível online 
  • Depoimento de Boris Davidovitch à CPI da Energia Atômica de 1956, Diário do Congresso Nacional, 30 de outubro de 1956, http://goo.gl/vWr32N&hl=pt-BR&tg=818&pt=19">disponível online
  • Uranium Substitute Is No Longer Needed, but Its Disposal May Pose Security Risk, New York Times, 23 de setembro de 2012, disponível online
  • U-233 Disposition Project Update, Departamento de Segurança dos Estados Unidos, 2011, slides disponíveis clicando aqui 
  • A Física Atômica no Brasil: da questão das areias monazíticas à CPI de 1956. Mário Fabrício Fleury
  • Especial Município A Gazeta -Guarapari – 26 set 1994
  • http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/saiba-quais-sao-segredos-historicos-brasil-706546.shtml&hl=pt-BR&tg=837&pt=21">A bomba atômica dos militares – Revista Aventuras na História, publicado em 17/8/2011
  • Instrumentation Between Science, State and Industry – edited by Bernward Joerges, Terry Shinn, 2001
  • Guarapari, muito mais que um sonho lindo. Beatriz Bueno, 2012
  • “Testes são possíveis há dois anos”, Folha de S.Paulo, São Paulo, 10 de agosto de 1986
  • “A bomba atômica no porão”, Veja, São Paulo, n. 792, abril de 1987
  • “Na cerimônia e nas ruas, átomos de discórdia”, Folha de S.Paulo, São Paulo, 9 de abril 1988
  • Mineração: Guerra pelas terras raras, Unesp, 09/04/2012
  • A política nuclear brasileira entre 1945-1964.  Fabiano Farias de Souza (UERJ)
  • “Serra do Cachimbo pode ser local de provas nucleares”, 08/Agosto/1986, Folha de São Paulo
  • Especial “A Nuclebrás em Guarapari”, Maura Fraga,  Jornal A Gazeta, 15/05/1983
  • “Nuclebrás fica em Guarapari por mais três anos”, Jornal A Gazeta, 7/05/1983
  • Reportagens publicadas pelos jornais Tribuna da Imprensa (RJ), Revista da Semana (RJ), Diário de Notícias (RJ), Folha Capixaba (ES), Diário da Noite (RJ)
  • Chicago Tribune, “Brazil acts to bar export of minerals”, 3 de abril de 1950. Disponível online
  • Fluvial Monazite Deposits in the Southeastern United States. Department of Interior, EUA, 1968. Disponível online
  • The geologic Occurrence of Monazite, Department of the Interior. USA, 1967. Disponível online

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